sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Um dia destes havemos de ir os dois à escola

Diante de mim, na televisão que olho esporadicamente, um daqueles programas de entretenimento meio (porque não ser um pouco benévolo?) idiotas, em que gente que acedeu à glória suprema de uns instantes na televisão se desfaz em cacarejos estridentes, se contorce de animação numa felicidade pateta. Estão felizes?
E de repente é você, Monteiro, quem se senta ao meu lado, não aqui - na sala de professores - me pousa ao de leve a mão no braço, com aquela cordialidade delicada que só o Monteiro sabia. Está feliz? Era muitas vezes assim, Está feliz?, que, ao encontrarmo-nos na sala de professores, o Monteiro me interpelava. Não bem interpelar, vim a perceber depois, mais cumprimentar, como se dissesse Está bom?, ou Tem passado bem? De modo que, da primeira vez que me interpelou (cumprimentou), Está feliz?, deve ter-se notado na minha cara uma expressão de surpresa - não indignação, claro, nem sequer irritação contida, apenas surpresa. E logo o Monteiro a desfazer mal-entendidos, com aquela delicadeza que sempre me tocou, Não lhe estou a perguntar se é feliz, mas se está feliz. O Monteiro, de resto, seria incapaz de querer intrometer-se naquela parte de mim que sempre resguardo da devassa alheia, o território da minha privacidade.
Não me lembro em que ano chegou à escola, mas nessa altura já eu por lá andava há bastantes. Em breve criou-se entre nós uma certa proximidade afectiva, quer dizer, gostávamos de conversar, ou melhor, não era bem assim, o Monteiro gostava de conversar, porque era quase sempre você que falava, de coisas e loisas como bom conversador que era e eu nunca fui, e eu gostava de o ouvir, as suas pequenas e despretenciosas histórias da vida, que você contava com uma bonomia muito sua. Chegámos mesmo a uma certa cumplicidade, como naquelas ocasiões em que o Monteiro se aprimorava em patranhas inofensivas, Então a Idalete não sabia que o Jorge e eu andámos juntos no seminário?, o Monteiro sempre sério, olhava-se-lhe para a cara e nada, nenhum indício que alimentasse a dúvida, Pois é, podíamos hoje estar bem, sermos bispos ou coisa parecida, se não tivéssemos sido expulsos, e a culpa foi aqui do Jorge, e eu, sempre inábil nestas coisas, com dificuldade em não denunciar a patranha, tentando um ar contrito que convencesse, arriscando apenas um qualquer balbucio de defesa. Pois apesar dessa cordialidade o Monteiro tratou-me sempre por você, ao que eu correspondia, evidentemente, da mesma maneira. Não sei porquê, Monteiro, sempre associei isso à delicadeza da sua índole, como se o tratar-me por tu fosse da sua parte como forçar grosseiramente uma porta.
Pois, o tal programa na televisão, meio imbecil, com aquela gente toda a desfazer-se em cacarejos estridentes. Estão felizes?, pensei. E foi ao fazer-me essa pergunta que o Monteiro se veio sentar ao meu lado. Já agora deixe-se ficar aqui e veja também, olhe só, os apresentadores, profissionais do charme, os apresentadores, campeões da boa disposição, E agora, senhoras e senhores, sempre tão jovens, tão alegres, tão comunicativos, tão postiços na sua rebuscada naturalidade, tão cheios de enjoativos lugares comuns, Ó Tânia, se o seu namorado está a ouvir, risos contagiantes, um braço a pousar no ombro, Ó Tânia, o seu namorado não é ciumento, pois não? a orquestra num esforço de decibéis, a concorrente a esganiçar-se com brio, a curvar-se no fim para os aplausos (de êxtase ou alívio?) de êxtase, os familiares e amigos em saltos frenéticos na plateia, braços no ar, apoteoses de palmas, alguém das suas relações próximas está a entrar na glória, E agora, tan-tan-tan-tan, vamos ouvir a opinião do júri, o júri mostra-se amável, benevolente, não está ali para estragar a festa, não é?, deixa palavras de encorajamento, mais palmas, mais gritos, às vezes lágrimas de comoção que um zoom desenfreado da câmara se apressa a colher, Na próxima semana cá estaremos à mesma hora, sorrisos brilhantes de dentes impecáveis, um Ciao prolongado, modulado, as bocas rasgadas de orelha a orelha, sempre tão jovens, tão alegres, estão felizes?, tão comunicativos, estão felizes?, tão simpáticos, estão felizes? Ó Monteiro, pergunte-lhes lá você se estão felizes. Se calhar estão, e ainda bem, diz você. Tem razão.
Mudando de assunto: um dia destes havemos de ir os dois à escola, pode ser? Talvez ainda haja por lá quem goste de nos ver.

1 comentário:

Anónimo disse...

Magnífico...ao ler este texto foi como se estivesse sentada ao vosso lado na Escola...
Bonita homenagem esta ao Monteiro, como só o Jorginho sabe fazer - simples maneira de escrever e com tanta elegância.
Obrigada por partilhares connosco este texto tão belo - de certeza chega aos Céus...
Teresaroldão