quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Natal secreto

Hoje, o meu pai e a minha mãe vieram ter comigo. E também a Susana e o Rui, e o avô Silvestre, e a avó Berta. Vamos passar juntos a noite de Natal. Logo, quando me sentar à mesa, todos vocês ficarão ao pé de mim. Só eu saberei que lá estão. Mas é tão bom que estejam! De prenda dou-vos o vazio que vocês hoje encheram e a gratidão por se terem lembrado de mim.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Pelo Natal um punho erguido

A paz não cai do céu
e a esperança não se realiza
se não a fizermos realizar.

Por isso
a mim
os votos de Natal,
tão piedosos,
(ia dizer
tão seguramente piedosos
mas retirei a tempo o advérbio)
parecem-me quase sempre
enjoativos,
a escorrer
os lugares comuns
das rotinas bem oleadas.
Mas ainda que sejam
piedosos,
sinceramente piedosos.
Só por si
a piedade é curta
se ao seu lado não estiver
presente a esperança
e mais do que a esperança
a vontade
de justiça
como uma mão pronta
para a luta.
Acredito na esperança
e sei que há-de realizar-se
um dia,
a esperança
da humanidade,
e nela
a esperança de cada um,
na exacta medida em que
não colida com a esperança
dos outros.

Por isso faço da esperança
um punho erguido.
Porque a paz não cai
do céu
e a esperança não se realiza
se não a fizermos realizar.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Quem sabe se um dia?

Sentar-se um pouco por fim no sofá coçado, esticar as pernas numa lassidão todo o dia ansiada, procurar um escape na televisão
- Coisas alegres, chatices já tenho que cheguem
a apresentadora num escarlate decotado
(eu num escarlate decotado)
fazendo boquinhas de espanto fingido nos píncaros dos saltos altos, derramando uma alegria de plástico,
- Coisas alegres, chatices já tenho que cheguem
uma boa disposição profissional, enquanto no rodapé
Beijinhos para a Cristina e para o Manel
pérolas de uma ternura de pacotilha,
Digo ao mundo e a ti que és a minha vida
de um lirismo pandilha que não dispensa a exposição pública,
Digo perante todo o país amo-te Andreia
desforrar-se de vez em quando metendo-se nas lojas à procura de trapinhos, estar do outro lado
- Agora sou cliente
não ter de derramar simpatias, diminutivos sorridentes, e depois andar bonitinha ajuda a parecer alguém, a esquecer as frustrações, a humilhaçãozinha de ser
(de se sentir?)
menos que os outros, e quem sabe até se um dia,
- Há-de ser sempre assim a minha vida?
quem sabe se um dia, quem sabe, as coisas não vão mudar?

Tão longe o olhar deste vazio de agora - 2

Sempre tão novas
(aos trinta anos já se é velha)
tão arranjadinhas, tão apresentáveis,
- Não há cá desleixos
apesar do salário escasso e incerto, o sorriso (sorriso?) sempre vigilante,
- É preciso causar boa impressão
o inevitável
- Posso ajudar nalguma coisa?
sempre engatilhado, os diminutivos sempre à mão
- Também temos a t-shirtezinha em verde
dando sempre razão ao cliente,
- O cliente tem sempre razão
horas intermináveis de pé a arrumar o que os clientes desarrumam, a disfarçar o cansaço com sorrisos em que se adivinham azedumes reprimidos, e de súbito, às vezes, o olhar
- Ao menos o olhar, já que eu não posso
a escapar-se, a partir,
- Estou aqui mas não estou aqui
a ausentar-se para muito longe
(para onde?)
para muito longe deste vazio de agora,
- Se eu pudesse ir com o olhar...
Até quando passar a vida atrás de um balcão,
- Se puder ajudar nalguma coisa
as pernas que doem, a sola dos pés que se abre
(até quando esta vida?)
lá fora o sol, o vento nas árvores,
- Não tem em azul? Preferia em azul
cansaço, apesar do cansaço de novo o esforço de um sorriso
- Azuizinhas não temos
mais triste ainda que o olhar, tão longe o olhar deste vazio de agora.