terça-feira, 30 de novembro de 2010

Agarrar-se à vida

Como pode a gente agarrar-se à vida?
Em novo, ainda longe de ser este que sou agora, não precisava de me agarrar à vida, sempre Verão, sempre sol, sempre azul o céu. Tudo valia a pena e nunca a pergunta
- Para quê?
subia dos fundos escuros onde se escondem a renúncia e o medo, de que não suspeitava, e que agora sei que existem, porque
dou comigo a espreitar as notícias da necrologia
- Mais um
a olhar de relance a montra duma loja ao pé da estação onde negrejam retratos com cruzinhas ao lado, e um incómodo a picar-me
- Quando será a minha vez de me porem a fotografia ali?
a espiar no espelho os sinais da ruína que avança, as bochechas que desabam, os vincos que descem do nariz para o queixo cada vez mais fundos, os braços onde cada vez mais peles, a olhar-me numa fotografia com a Carolina ao colo e a pensar que ela, um dia,
- O avô
e eu já só aquela imagem e uma recordação desfocada.
Agarrar-se à vida como? Como pode a gente agarrar-se à vida?
- Aqui era eu em casa da minha avó Maria, devia ter uns quatro ou cinco anos
e percebo então como a vida me fugiu, como me foge quando o médico
- Há aqui uma perda de acuidade visual que não entendo
e a tenaz do medo a turvar-me o sossego
- Vamos fazer uns exames, o campo visual, um TAC ao cérebro
e a tenaz impiedosa a avançar as mandíbulas ameaçadoras apesar de o médico
- Nada de especial, não se preocupe.
Agarrar-se à vida como, quando a tenaz cada vez mais uma companhia indesejada, quando o corpo todos os dias a dar sinais
- Vai-te preparando
os ossos a gemerem, dez minutos a ler e nevoeiro nos olhos, o coração a coxear,
a Carolina, um dia,
- O avô
e avô nenhum.




segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Fim de dia

Para lá da cortina translúcida, o verde esvaído do jardim, a magnólia a que restam apenas algumas folhas antes da nudez total, a tristeza escorrendo com a chuva do céu cinzento, e um silêncio acolhedor cobrindo tudo. Enrolo-me nele como um ouriço e deixo por instantes que tudo se reduza a mim mesmo.

sábado, 6 de novembro de 2010

Aniversário

6 de Novembro: passaram já sessenta e seis anos de andanças pelos caminhos da vida.
Há bocado, já a noite caíra, sentei-me num sofá, resguardado num recanto de silêncio, e ofereci a mim mesmo uma prenda: alguns minutos de Schubert, umas pequenas peças para piano.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Uma espécie de tristeza a crescer cá dentro

Às vezes acho que gosto de ter pena de mim. Ou talvez não, se calhar não é pena. Talvez uma espécie de tristeza a crescer cá dentro, um vazio a encher-me, um ir desistindo de tudo aos pinguinhos. Ou será medo? Há tempos li a Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, do Jorge de Sena. Já a tinha lido várias vezes, mas só agora aquele verso ficou a martelar-me

Porque a morte é de todos e virá

Sento-me diante do mar, as ondas a dissolverem-se em branco, o azul no mar e no céu, as pessoas a gozarem a vida, e o verso, sem mais nem menos,

Porque a morte é de todos e virá

e volta e meia

Porque a morte é de todos e virá

Há dias, no convento de S. Paio, na Cerveira, uma escultura do José Rodrigues a avisar-me

Em breve esquecerás tudo, em breve todos te esquecerão

escrito num bloco de mármore com as letras ao contrário, que se lêem como deve ser no espelho colocado em frente, e no espelho não apenas as letras, olho e eu também ali ao lado das letras


quarta-feira, 21 de julho de 2010

Porque me sinto tão mal?

Como se de repente uma nuvem me tapasse o sol, o homem, um homem, aproxima-se de mim, um pouco hesitante, curva-se ligeiramente para diante, num gesto em cujo significado só mais tarde penso sem chegar a nenhum resultado seguro,
(e como poderia chegar se não sou o homem, se não sei o que sente, se apenas sei as conjecturas que faço)
sem que haja contudo subserviência no seu gesto,
(acho que não há)
humildade talvez, vergonha, quem sabe se humilhação que procura diluir num sorriso quase imperceptível, só nos olhos, todavia tão magoados. Avança um pouco a mão direita, a palma voltada para cima, murmura qualquer coisa que não entendo bem. Deixo-lhe uma moeda. Porque me sinto tão mal?

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Civilização

A incrível parafernália de bens materiais em que a ciência, a técnica e, mais comezinhamente, o negócio nos têm sem cessar mergulhado leva-nos a supor que somos imensamente importantes e imensamente civilizados. A verdade é que este conceito de civilização apenas nos tem tornado mais egoístas, mais arrogantes - e menos escrupulosos. Ser alguma coisa na vida é "ter"; e, para se "ter", o que se diz "ter", é bom que não haja empecilhos morais a tolherem-nos. E depois há o desdém, ostensivo ou apenas íntimo, pelos que ficam de fora desse mundo reluzente da civilização.
Civilização é, evidentemente, um conceito cultural. E, de tal modo estamos imbuídos deste conceito que faz coincidir civilização com abundância de bens materiais, que dificilmente somos capazes de imaginar que se possa ser civilizado de outro modo. Por esta ordem de ideias, Fulano, que tem tudo o que se possa imaginar de bens materiais, e a quem falta tudo o que se possa imaginar de princípios morais, é imensamente considerado, objecto de admiração geral, a que se mistura a inevitável ponta de despeito. E, ainda que seja um pulha, a maior parte dos seus concidadãos inveja-o - e inveja-lhe a imensa "civilização".
Por mim, sem prescindir dos bens materiais que me permitem ter uma vida medianamente confortável, parece-me que é preferível ser civilizado de outro modo, desde logo não apunhalando o meu semelhante para daí colher benefícios pessoais. Porque o mundo está cheio de pessoas importantes, de pessoas "respeitáveis", a quem simplesmente falta aquela civilização que, acima de tudo, se baseia na ética. Como disse Saramago, o único verdadeiro progresso que existe é o progresso moral.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Livro de leitura da 3ª classe

Ao passar, olho a montra apenas de relance. Mas a capa dum livro prende-me o olhar: meninos sorridentes, pombas brancas voando no céu azul, bandeiras que a corrida dos meninos agita. Ao meio, bem maior que as outras, a da Mocidade Portuguesa, empunhada por um rapazinho fardado.
É ele: LIVRO DE LEITURA DA 3ª CLASSE. A água turva da memória agita-se. Ternura? Saudade? Dá-me vontade de folhear outra vez os textos que os meus dedos de menino percorreram aplicadamente. Uma vez, e outra, e outra.
Menino, sabes o que é a Pátria?
Somos um bando / De passarinhos; / Vimos agora / Dos nossos ninhos.
Lisboa tinham-na os moiros: / Quem lha havia de tomar? / El-Rei D. Afonso Henriques, / E os Cruzados a ajudar.
Minha terra, quem me dera / Ser humilde lavrador, / Ter o pão de cada dia, / Ter a graça do Senhor!
E, assim, foi o Douro quem, sujo e enlameado, chegou primeiro.
“Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo?”
“Palram pega e papagaio, / E cacareja a galinha…”
Passado o deslumbramento do reencontro, a triste realidade: do princípio ao fim, o livro era uma cartilha doutrinária, com o seu mundo tão pequeno, tão fechado, tão canhestro, tão falsamente harmonioso, tão bolorentamente patriótico.
Já não sou o rapazinho de oito anos, já não são os mesmos olhos que percorrem o livro. Mas saio deste encontro envolto numa suave melancolia. Oito anos...