quarta-feira, 22 de julho de 2009

A morte

Acabei há pouco de ler "A Morte de Ivan Ilitch", de Lev Tolstoi. Grande pecado meu só agora o ter lido, porque, como sublinha António Lobo Antunes num pequeno prefácio, se trata de uma das grandes obras-primas criadas pelo espírito humano. São poucas páginas, mas está lá tudo sobre o que somos, sobre a condição humana. Não se fica o mesmo depois de se ter lido este pequeno livro de Tolstoi, porque onde está Ivan Ilitch, na sua essência humana despida de tudo o que é circunstancial, nos vemos irremediavelmente a nós próprios.
Para mim, "A Morte de Ivan Ilitch" é, acima de tudo, um livro sobre a morte e sobre como lidamos com ela; mas é também um livro sobre a fragilidade da condição humana, sobre o carácter tão efémero da vida e de tudo o que faz parte dela. Estão lá todos os sentimentos que o homem pode experimentar. Mas é quando o horizonte da morte começa a ser visível para Ivan Ilitch que a atmosfera do livro se adensa a um ponto quase insuportável. Porque é a vista desse horizonte que o muda por completo, ao pô-lo perante o desafio supremo da vida.
Todos sabemos da inevitabilidade da morte: "Caio é homem. Os homens são mortais. Portanto Caio é mortal". Ivan Ilitch sabia-o, mas encarava esse axioma como natural e sem sobressalto. Eram os outros que morriam, ele continuava vivo e a apreciar a vida. O princípio é aceitável enquanto se aplica a outros, mas torna-se insuportável quando passa a ser uma realidade para nós próprios. De repente tudo muda: o que sentimos, o que pensamos, como vemos os outros e o mundo. A esperança é ainda capaz de nos visitar, por vezes, mas cada vez menos, cada vez menos. Até à resignação e à desistência final.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Depois acabam de vez

O café tem a forma de um grande L, a face exterior toda envidraçada. Sento-me ao fundo, do lado da haste mais pequena do L. Enquanto espero, os olhos vão vadiando, acabam por se fixar num pequeno cartaz feito em computador, resguardado numa bolsa de plástico
(Por que razão parei no cartaz? Por nenhuma razão em especial? Pelo hábito de uma vida quase inteira a catar erros por obrigação?)
Por favor pagamento na caixa obrigado.
O “por favor” entre aspas, o *obrigado* assim, entre dois asteriscos.
(Vejo agora que foi pela segunda razão.)
Não avisto o café todo, a parte superior da haste mais comprida do L fica fora do meu campo de visão, há alguma gente espalhada pelas mesas, no vértice do L uma televisão a que ninguém liga, para lá das vidraças o arrepio da nortada.
Tento não ouvir os ruídos à minha volta, concentrar-me, às vezes consigo, às vezes não consigo, o meu esforço rompe-se, deixa passar farrapos de conversas
- No fim de Janeiro
- Tanto mais que
- Pouco, pode ser pouco, mas
- Passa-se dos carretos
Reteso a vontade, volto a fechar-me, não oiço mais que um zumbido dormente, indistinto, vozes confusas sem palavras, um fio de música que não é música escorrendo da televisão, um vago tilintar de copos, o arranhar da máquina de moer o café, uma porta de frigorífico a fechar-se com um baque surdo. Procuro então as palavras, mas não são fáceis de encontrar, mesmo impondo-me a disciplina de não levantar os olhos do tampo da mesa. Lá vou apanhando algumas, a conta-gotas, penosamente, e sempre com a impressão
a certeza?
de que não descortino as que queria.
As pancadas de uma mão batendo em cutelo na mesa ao lado
- Porque não há direito que
trazem-me de novo para fora de mim mesmo. Olho para além das vidraças do L: do lado da haste mais comprida cava-se um pequeno vale ajardinado que faz parecer que o café está suspenso
- Espera aí, vou explicar-te
com um parque de estacionamento cheio, pequenas árvores, candeeiros, o vento que se vê nas ramagens. Mais para o fundo
- Não vou deixar-me enrolar por aquela estúpida
uma avenida corre de través, há umas bombas de gasolina, por trás uns choupos altos, ao lado um pavilhão desportivo e, por trás de tudo, restos de uma antiga barreira meio encoberta pelo verde-escuro dos salgueiros.
A barreira...
Remexo no fundo da memória, procuro avivar imagens desbotadas
- A gaja é uma chata, se a avisto ao longe
deixo de ser o eu de agora, sou o eu de há uns cinquenta anos atrás. Venho de bicicleta, a pasteleira usada que o meu pai me comprou quando fui para o liceu, já perto da estação viro à direita pela Rua do Senhor dos Aflitos, aqui é a passagem de nível, tenho de esperar que o comboio passe, locomotiva a vapor, carruagens de primeira, segunda e terceira classe, escrito nas portas em numeração romana - I, II, III - em traços dourados
ou brancos? ou...?
- Mas não penses que foi só isso
Tento varrer o que vejo agora, os relvados, os candeeiros, estas árvores, a avenida, as bombas de gasolina, o pavilhão desportivo, pôr no seu lugar as antigas coisas, o que lá estava há cinquenta anos
o que eu penso que lá estava há cinquenta anos
mas não é fácil, a memória fraqueja, é como uma fotografia meio apagada pelo tempo, há pormenores que não se distinguem. Atravesso a linha e fica-me à esquerda, ao fundo, a estação, primeiro os armazéns de mercadorias, depois os cais de embarque de passageiros, logo a seguir à passagem de nível, também à esquerda, a ruazinha de terra batida do Bairro do Vouga, casas térreas, modestas, enegrecidas pela poeira e pela fuligem dos comboios. Vou avançando em direcção à Forca
meia dúzia de casas duzentos metros à frente
para a direita cava-se o vale
- Não sejas chato, já te disse que sou eu que pago
este que avisto aqui do café com os relvados, os candeeiros, estas árvores, a avenida, as bombas de gasolina, o pavilhão desportivo, mas não este, claro, outro vale que não tem nada que ver com este
quais relvas, quais avenidas
quase tudo em bruto, caniços a bordejar um ribeiro que passa no fundo, um caminho poeirento e avermelhado que desce da estradeca até um grande largo de terra batida, avermelhada também, onde se dispersam pilhas de telhas e tijolos, por trás a fábrica, as chaminés altas de tijolo
a placa, agora, numa rua por ali: Rua da Cerâmica do Vouga
e ao fundo de tudo a barreira, de tons acinzentados
é pelo menos o que vejo na fotografia impressa na memória.
- Então se quiseres, logo à noite
De novo a televisão no canto do L, peripécias de telenovela, tilintar de copos, o arranhar da máquina de moer o café. Por uma última vez sobreponho ao vale ajardinado, ao parque de estacionamento cheio, aos candeeiros, às bombas de gasolina, ao pavilhão desportivo, a fotografia guardada na memória, e penso que tudo o que está na fotografia existe ainda
(existe mesmo)
porque as coisas, como as pessoas, permanecem enquanto duram na memória de alguém. Depois acabam de vez.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Um sorriso tão leve que só os olhos o denunciam

Dentro de momentos vai partir da linha nº 4
os já acomodados olham através das janelas os aflitos que correm, uns afectando um desinteresse repassado de superioridade aziumada
- A mania de virem sempre à última da hora
o comboio com destino a Aveiro
outros desejando satisfações mesquinhas para as suas frustrações
- Era bem feito que perdessem o comboio
folgazões alguns
- Acelera, pá
também indiferentes, a quem aquilo não aquenta nem arrefenta, seguem as pernas ofegantes
último aviso nos altifalantes
vai partir da linha nº 4
que procuram chegar ainda a tempo de não ficarem na plataforma a ver o comboio ser engolido pela escuridão do túnel, um último esforço, há quem pareça conter-se para não bater palmas, e as respirações arquejantes a salvarem-se no último instante no interior da carruagem, fazendo esmorecer as curiosidades e os azedumes, logo de seguida a estação a ficar para trás, para trás, mais para trás, e de súbito a escuridão para lá das janelas.
Diante de mim umas unhas pintadas e de óculos escuros descansam sobre uma revista pousada nos joelhos, os óculos escuros a desistirem de perscrutar as trevas do túnel, a deslizarem para a revista, a capa da revista a gritar com fotografia e letra avantajada
Descobrimos Karina Bacchi namora há quinze dias com Ronaldo Louca paixão Mãe da actriz eufórica “É um menino de oiro”
os óculos escuros,
adivinha-se, a sonharem com aventuranças, com Ronaldos impossíveis num suspiro de desalento, e lá muito em baixo a fita escura do rio encrespada pelo vento, as pontes de um e outro lado, casas encarrapitadas na escarpa numa vertigem de queda, casas velhas a que a voragem do tempo deu cores indefinidas, de paredes a esboroar-se e janelas sem vidraças como órbitas vazias, vagões à desbanda num abandono arruinado, uma antiga fábrica em escombros, prédios feios, roupa a secar em cordas nas janelas, vidas estreitas, tantas vidas estreitas que precisam de almejar Ronaldos mesmo que só em sonhos acordados, os óculos escuros a virarem as folhas da revista, a virarem os sonhos,passando a outros assuntos importantes da actualidade, mexericos variados, divórcios, as maminhas novas de uma actriz, como manter o parceiro sexualmente interessado, receitas para manter a linha, tantas vidas estreitas a precisarem de almejar Ronaldos, os Ronaldos com tantas faces, férias em praias com palmeiras e águas transparentes, um físico perfeito, roupas caras, cabelos soltos em descapotáveis, casas de sonho, em vez disso os óculos escuros obrigados a um subúrbio atravancado de betão, de prédios feios com a tinta a descascar, os óculos escuros obrigados a um apartamento acanhado, móveis baratos, paredes rachadas, dinheiro contado, o que fazer aos sonhos?, roupa a secar em cordas nas janelas, vidas estreitas a precisarem de almejar Ronaldos mesmo que só em sonhos acordados.
próxima paragem Valadares
Quatro andorinhas de loiça pregadas na parede de uma casa, Vivenda Adozinda, entre a janela e a porta O meu lar - 1969, as andorinhas num voo estático, ali a voarem há trinta e tal anos sempre no mesmo sítio, cobertas de pó, também em pó a Adozinda?
16h21 no painel electrónico
O azul ausente do céu, dunas de vegetação rala dobrada pelo vento, um passadiço de madeira sobre as dunas e o mar a começar logo ali, a vir até nós o cheiro da maresia e o marulho das ondas apesar das janelas fechadas do comboio, o fervilhar branco da espuma sobre os esporões rochosos que emergem da água, o mar
próxima paragem Espinho
a acabar na bruma que encurta o horizonte, entre a espuma e a névoa um barco perdido, dois vultos perdidos, de pé, que a ondulação faz subir e descer, subir e descer, subir e descer, os esqueletos arrepiados das barracas na praia deserta, logo a seguir os primeiros prédios, lojas, hotéis, o casino, apartamentos, tantas vidas diferentes, o chiar dos travões, a agitação das entradas e saídas, olhos inquietos que sondam à procura de um lugar, um suspiro de alívio ao acomodar-se, um remexer de nádegas na procura da melhor posição, por fim um sorriso adivinhado de discreta satisfação nos olhos que seguem por desfastio o que se passa lá fora, temperatura exterior 22º, um boné vermelho suspenso sobre a relva num pequeno jardim, duas mãos atentas catando coisas no chão, ervas daninhas, o tédio?, o tempo a passar, lento, nem dão por ele estes dois miúdos que não param quietos, calados muito menos
- Vou abrir a porta
o olho duro, apenas um olho, o outro é uma névoa esbranquiçada, do pai a ameaçá-los, apesar disso os miúdos
- É só carregar neste botão
o olho esbranquiçado a levantar-se, a oscilar um pouco com os balanços do comboio, a palmada já no ar
- Já vos tinha avisado
alguns momentos de sossego, já não era sem tempo, embora seja pouca a esperança de que durem
16h39 temperatura exterior 21º
campos de milho, duas vacas cabisbaixas plantadas no meio de um campo, alheadas de tudo, só o rabo incansável enxotando moscas que não se vêem.
E de repente, muitos anos atrás, numa caçada, no Caramulo?, o Roque, o Telmo, o meu pai, o Zé Borrego, o Aníbal, eu, não sei já se exactamente estes ou só alguns destes ou também outros, eu miúdo, gostava de ir com o meu pai à caça, ver os perdigueiros amarrados, estremecer com a revoada súbita das perdizes, sentir o cheiro da pólvora queimada, nós sentados a uma sombra a escorropichar os cantis, a descansar uns momentos, o Zé Borrego agastado com as moscas que não o deixavam em paz, a sacudi-las com gestos resignados, e o Roque, sim, o Roque, lembro-me bem
- Faz-te muita falta o rabo, ó Zé
temperatura exterior 21º
mais casas que passam, um caminho que corre por instantes ao lado do comboio e desaparece de repente, a mancha escura de uns eucaliptos, depressa, não gosto de eucaliptos
- Avô, sabes até quantos sei contar?
o avô por detrás do jornal, a segurá-lo com dificuldade no meio da névoa do sono
- Até quantos?
a voz entaramelada, um fio cambaleante, e o miúdo
- ...quarenta e oito, quarenta e nove
o jornal a desabar sobre as pernas sobressaltadas, as pernas num elogio
- Sim senhor, agora tens de aprender a contar até cinquenta, indignado o miúdo
- Ó avô, estás a dormir?
próxima paragem Salreu
Um telemóvel a ladrar de repente
- Estou
a dona a falar alto, como se todos estivessem interessadíssimos na sua vida, alguns se calhar até estavam, os olhos a olharem para um lado e os ouvidos a olharem para a conversa, ninhos de cegonha no cocuruto dos postes de alta tensão, esteiros com nuvens, uns sapatos pletóricos donde emergem tornozelos inchados mais largos que os sapatos, por cima das meias uma nesga de pele escamosa, olhos que desistem de lutar contra o sono, braços e troncos oscilando ao ritmo dos balanços do comboio, uns calcanhares escuros e coriáceos escapando de umas chinelas, umas calças de ganga com tamancas vermelhas e unhas pintadas de vermelho
próxima paragem Cacia
uma tirinha de papel que passa entalada entre o punho e o relógio, não esquecer o quê?, a mão de uma criança que o sono deixou entre os peitos da avó, deve ser avó
estação terminal Aveiro
e um sorriso muito leve que ilumina a face de uma rapariga sozinha, tão leve que só os olhos o denunciam.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Quem é que vai acreditar que já fui menina?

Hoje
(para dizer a verdade quase todos os dias)
a velhice acudiu-me à cabeça enquanto descansava, enquanto tentava descansar os ossos no meu canto do sofá
(agora os ossos passam a vida a reclamar)
e repisava os azedumes da vida, quer dizer, não já propriamente vida, este ramerrão magoado em que o melhor que me atrevo a esperar de cada dia é que não me traga nada pior que o anterior.
Quando foi que me tornei velha? Só sei que olho para o espelho
(- Quando é que ficaste assim velha, Natércia?)
e a Natércia que o espelho me devolve não tem nada daquela Natércia que está na fotografia em cima da cómoda, e no entanto sei que já fui ela, e lembro-me de que, quando era ela, pensava, como toda a gente
(acho que toda a gente)
pensava: "Nunca hei-de ser velha", ou nem sequer pensava no assunto, qual velhice, a velhice é para aqueles jarretas que se lembraram de nascer há muito tempo, agora eu, tanta vida pela frente. Isso quando era aquela da fotografia, mas mesmo muito depois, quer dizer, há uns doze, quinze anos atrás, quem me havia de dizer
(quem te havia de dizer, Natércia?)
o que o espelho me atira agora à cara sem nenhuma compaixão. Apesar de já nessa altura algumas partes do corpo me irem beliscando o sossego: "Ainda hás-de ficar um trambolho como aquela", mas eu sem querer acreditar, recusando-me a acreditar: "Ficar assim, eu?"
Agora, quando saio à rua, quando me arrasto até à rua, raspando os sapatos no chão em passinhos miúdos, vejo a lástima que sou nos olhos dos outros, nos olhares disfarçados por detrás dos olhares sorridentes: "A Natércia, coitada, quem a viu e quem a vê..."
Ao que cheguei, ter de sofrer a pena dos outros, o dó de mim mesma, sentir-me humilhada por mim mesma por me ter tornado este trambolho ambulante, cada vez menos ambulante para dizer a verdade, isto apesar de: "Então, D. Natércia, está com óptimo aspecto", como se eu não soubesse o que óptimo quer dizer, eu a ver a mentira à légua, vejo mal mas ainda consigo ver-me ao espelho, nessas ocasiões acho que até gostava de ver pior. Apetece propor: "Quer trocar?" Mas ainda que o aspecto fosse já não digo óptimo, ao menos bom
(que nem por sombras)
e o resto, o que não se vê, as vísceras num desarranjo permanente apesar de montes de comprimidos todos os dias, que às vezes até me baralho, o coração sempre a avisar-me: "Julgas que tens vinte anos?", a obrigar-me a parar quatro ou cinco vezes para subir a miséria de dois lanços de escadas, e mesmo assim sabe Deus, eu que em nova subia três ou quatro andares com uma perna às costas, a espinha aos gritos por coisas de nada
(coisas que eram de nada)
um calvário calçar os sapatos, apanhar uma porcaria qualquer do chão, a esferográfica de fazer as palavras cruzadas, para não ir mais longe, que o sono às vezes faz deslizar para a carpete,
(um nevoeiro de chumbo a pesar-me na cabeça, a fazê-la despenhar-se, o queixo numa pancada contra o peito a travar-lhe abruptamente a queda, a fazê-la subir de novo como uma bola atirada ao chão, na televisão por instantes vultos indistintos em gestos sem sentido, o nevoeiro a adensar-se de novo, o queixo outra vez a descair)
um calvário portanto apanhar uma porcaria qualquer do chão, a esferográfica de fazer as palavras cruzadas, por exemplo, para já não falar do cocó do cão
(que é quem ainda me vale para ter alguma companhia desde que Deus levou o meu Ernesto)
quando o levo a arejar à rua, já me lembrei de fazer como os vizinhos que deixam a trampa dos cachorros espalhada por todo o lado, uma vez até por descuido
(que eu ando sempre a olhar para o chão por causa disso)
aconteceu-me pisar um cocó, o trabalhão que foi para fazer desaparecer o pivete dos sapatos, sabões, detergentes, escovas, até uns borrifos da minha água de colónia que me farto de poupar porque para a miséria da minha pensão é caríssima, mas também não posso andar por aí a tresandar a velha, e mesmo assim durante uma semana parece que tudo me cheirava a cocó de cão.
Os ossos desconjuntam-se numa reclamação uníssona, numa vozearia rangente que me parece atrair as pessoas às janelas, às vezes até me lembro do meu falecido Ernesto
(Deus o tenha em descanso)
também se queixava muito dos ossos, coitado, ele a queixar-se das costas: "Ando com umas pontadas aqui em baixo", e eu a animá-lo: "É o tempo que está a mudar".

Ela a pensar que me animava , mas eu: "Porque é que quando eu tinha vinte anos o tempo nunca mudava?", e não eram só os ossos, claro, outras coisas, as noites mal dormidas, a próstata a fazer-me levantar três e quatro vezes para ir à casa de banho, ficar uma eternidade sentado na sanita a gotejar esforços, voltar para a cama a arrastar as chinelas sonolentas, a matutar na última consulta: "O senhor doutor acha que vai ser precisa a operação?", e o médico a pensar que me sossegava: "Quando sai ainda não precisa de fazer um mapa dos urinóis da cidade, pois não?" Mas o certo é que as noites eram um desassossego, deita, levanta, deita, levanta, e foi mesmo a próstata que acabou comigo.

Às vezes ganho coragem
(que é preciso coragem, não julguem que não)
e ponho-me a olhar para mim mesma, as pernas, por exemplo
(quem me trocou as pernas?)
cordas e nós arroxeados, nos pés joanetes triunfantes como cabos avançando pelo mar dentro
(o Dr. Gaspar: "Natércia, diga lá os cabos da costa portuguesa", e eu sempre com medo de falhar algum, eu que até gostava tanto de geografia: "Cabo Carvoeiro, Cabo da Roca, Cabo Espichel")
Nesse tempo não tinha joanetes
(cabos )
nos pés, agora dois grandes cabos
(Carvoeiro? Espichel?)
não de certeza o da Boa Esperança, onde já vai esse, esperança agora em quê, só se for em que os joanetes não vão por aí fora, furiosos, ameaçando ainda mais furar os sapatos, um martírio arranjar sapatos, sempre dois números acima para poder acomodar os joanetes, depois os pés enormes, não os pés, claro, os sapatos, mas os pés para todos os efeitos, enormes para um corpo que teima em não parar de mingar, esperança agora em quê, portanto, só se for em que os joanetes
(cabos)
não vão por aí fora, em que não me engrossem ainda mais as cordas e os nós das pernas, estes trambolhos que já não me querem obedecer, uma a avançar, a outra a ficar para trás, renitente: "Já disse que não posso", a acabar por vir mas hirta, de má vontade, emperrando no chão apesar do sobrolho carregado de ameaças. Até outro dia estatelei-me ao comprido no passeio, a carteira à banda no chão largada na aflição da queda: "Ai, meu Deus!", uma bola de carne, inerte por instantes
(uma eternidade?)
a encher o passeio, a ensaiar movimentos desajeitados como uma barata voltada sobre a carapaça a agitar as perninhas, a conseguir por fim pôr-me a quatro, uma voz algures a aproximar-se, a humilhação a aproximar-se: "Espere aí que eu ajudo-a", eu a fazer recuar as mãos no chão, a arquear as costas à medida que as mãos se iam aproximando dos pés, a procurar um ponto de equilíbrio, a tentar erguer-me num esforço retesado de carnes flácidas, uma eternidade depois um gemido de pé: "Ai, meu Deus!", eu a sacudir grãos de areia das falanges sem conseguir sacudir a humilhação, a justificar-me apetecendo-me mas é desaparecer: "Tropecei em qualquer coisa", sem que se visse nada em que se pudesse tropeçar a não ser eu própria, tropecei em mim própria, tropecei na velhice que me ensarilha os pés, eu ali portanto à mercê da piedade ou da chacota disfarçada dos outros, apetecendo-me desaparecer mas tentando pôr um ar natural
(o trambolhão foi um percalço, vejam)
sem pernas perras, a espinha aprumada
(sabe Deus o esforço e mesmo assim)
a ensaiar os primeiros passos da fuga libertadora, mas logo o osso da anca a trair-me, a chamar-me a atenção: "Não achas que estás a abusar, menina?", a tratar-me por menina na esperança de que isso ajude em alguma coisa, menina, quem é que vai acreditar que já fui menina?
E no entanto, de súbito, homens na rua a tomarem-me o gosto com os olhos, a verrumarem-me o decote tecendo imaginações, afectando um ar natural que o olhar enviesado denuncia à légua, enquanto eu, baixando os olhos, me apresso num pudor lisonjeado.