terça-feira, 30 de junho de 2009

Depois acabam de vez

O café tem a forma de um grande L, a face exterior toda envidraçada. Sento-me ao fundo, do lado da haste mais pequena do L. Enquanto espero, os olhos vão vadiando, acabam por se fixar num pequeno cartaz feito em computador, resguardado numa bolsa de plástico
(Por que razão parei no cartaz? Por nenhuma razão em especial? Pelo hábito de uma vida quase inteira a catar erros por obrigação?)
Por favor pagamento na caixa obrigado.
O “por favor” entre aspas, o *obrigado* assim, entre dois asteriscos.
(Vejo agora que foi pela segunda razão.)
Não avisto o café todo, a parte superior da haste mais comprida do L fica fora do meu campo de visão, há alguma gente espalhada pelas mesas, no vértice do L uma televisão a que ninguém liga, para lá das vidraças o arrepio da nortada.
Tento não ouvir os ruídos à minha volta, concentrar-me, às vezes consigo, às vezes não consigo, o meu esforço rompe-se, deixa passar farrapos de conversas
- No fim de Janeiro
- Tanto mais que
- Pouco, pode ser pouco, mas
- Passa-se dos carretos
Reteso a vontade, volto a fechar-me, não oiço mais que um zumbido dormente, indistinto, vozes confusas sem palavras, um fio de música que não é música escorrendo da televisão, um vago tilintar de copos, o arranhar da máquina de moer o café, uma porta de frigorífico a fechar-se com um baque surdo. Procuro então as palavras, mas não são fáceis de encontrar, mesmo impondo-me a disciplina de não levantar os olhos do tampo da mesa. Lá vou apanhando algumas, a conta-gotas, penosamente, e sempre com a impressão
a certeza?
de que não descortino as que queria.
As pancadas de uma mão batendo em cutelo na mesa ao lado
- Porque não há direito que
trazem-me de novo para fora de mim mesmo. Olho para além das vidraças do L: do lado da haste mais comprida cava-se um pequeno vale ajardinado que faz parecer que o café está suspenso
- Espera aí, vou explicar-te
com um parque de estacionamento cheio, pequenas árvores, candeeiros, o vento que se vê nas ramagens. Mais para o fundo
- Não vou deixar-me enrolar por aquela estúpida
uma avenida corre de través, há umas bombas de gasolina, por trás uns choupos altos, ao lado um pavilhão desportivo e, por trás de tudo, restos de uma antiga barreira meio encoberta pelo verde-escuro dos salgueiros.
A barreira...
Remexo no fundo da memória, procuro avivar imagens desbotadas
- A gaja é uma chata, se a avisto ao longe
deixo de ser o eu de agora, sou o eu de há uns cinquenta anos atrás. Venho de bicicleta, a pasteleira usada que o meu pai me comprou quando fui para o liceu, já perto da estação viro à direita pela Rua do Senhor dos Aflitos, aqui é a passagem de nível, tenho de esperar que o comboio passe, locomotiva a vapor, carruagens de primeira, segunda e terceira classe, escrito nas portas em numeração romana - I, II, III - em traços dourados
ou brancos? ou...?
- Mas não penses que foi só isso
Tento varrer o que vejo agora, os relvados, os candeeiros, estas árvores, a avenida, as bombas de gasolina, o pavilhão desportivo, pôr no seu lugar as antigas coisas, o que lá estava há cinquenta anos
o que eu penso que lá estava há cinquenta anos
mas não é fácil, a memória fraqueja, é como uma fotografia meio apagada pelo tempo, há pormenores que não se distinguem. Atravesso a linha e fica-me à esquerda, ao fundo, a estação, primeiro os armazéns de mercadorias, depois os cais de embarque de passageiros, logo a seguir à passagem de nível, também à esquerda, a ruazinha de terra batida do Bairro do Vouga, casas térreas, modestas, enegrecidas pela poeira e pela fuligem dos comboios. Vou avançando em direcção à Forca
meia dúzia de casas duzentos metros à frente
para a direita cava-se o vale
- Não sejas chato, já te disse que sou eu que pago
este que avisto aqui do café com os relvados, os candeeiros, estas árvores, a avenida, as bombas de gasolina, o pavilhão desportivo, mas não este, claro, outro vale que não tem nada que ver com este
quais relvas, quais avenidas
quase tudo em bruto, caniços a bordejar um ribeiro que passa no fundo, um caminho poeirento e avermelhado que desce da estradeca até um grande largo de terra batida, avermelhada também, onde se dispersam pilhas de telhas e tijolos, por trás a fábrica, as chaminés altas de tijolo
a placa, agora, numa rua por ali: Rua da Cerâmica do Vouga
e ao fundo de tudo a barreira, de tons acinzentados
é pelo menos o que vejo na fotografia impressa na memória.
- Então se quiseres, logo à noite
De novo a televisão no canto do L, peripécias de telenovela, tilintar de copos, o arranhar da máquina de moer o café. Por uma última vez sobreponho ao vale ajardinado, ao parque de estacionamento cheio, aos candeeiros, às bombas de gasolina, ao pavilhão desportivo, a fotografia guardada na memória, e penso que tudo o que está na fotografia existe ainda
(existe mesmo)
porque as coisas, como as pessoas, permanecem enquanto duram na memória de alguém. Depois acabam de vez.

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