terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Quem é que vai acreditar que já fui menina?

Hoje
(para dizer a verdade quase todos os dias)
a velhice acudiu-me à cabeça enquanto descansava, enquanto tentava descansar os ossos no meu canto do sofá
(agora os ossos passam a vida a reclamar)
e repisava os azedumes da vida, quer dizer, não já propriamente vida, este ramerrão magoado em que o melhor que me atrevo a esperar de cada dia é que não me traga nada pior que o anterior.
Quando foi que me tornei velha? Só sei que olho para o espelho
(- Quando é que ficaste assim velha, Natércia?)
e a Natércia que o espelho me devolve não tem nada daquela Natércia que está na fotografia em cima da cómoda, e no entanto sei que já fui ela, e lembro-me de que, quando era ela, pensava, como toda a gente
(acho que toda a gente)
pensava: "Nunca hei-de ser velha", ou nem sequer pensava no assunto, qual velhice, a velhice é para aqueles jarretas que se lembraram de nascer há muito tempo, agora eu, tanta vida pela frente. Isso quando era aquela da fotografia, mas mesmo muito depois, quer dizer, há uns doze, quinze anos atrás, quem me havia de dizer
(quem te havia de dizer, Natércia?)
o que o espelho me atira agora à cara sem nenhuma compaixão. Apesar de já nessa altura algumas partes do corpo me irem beliscando o sossego: "Ainda hás-de ficar um trambolho como aquela", mas eu sem querer acreditar, recusando-me a acreditar: "Ficar assim, eu?"
Agora, quando saio à rua, quando me arrasto até à rua, raspando os sapatos no chão em passinhos miúdos, vejo a lástima que sou nos olhos dos outros, nos olhares disfarçados por detrás dos olhares sorridentes: "A Natércia, coitada, quem a viu e quem a vê..."
Ao que cheguei, ter de sofrer a pena dos outros, o dó de mim mesma, sentir-me humilhada por mim mesma por me ter tornado este trambolho ambulante, cada vez menos ambulante para dizer a verdade, isto apesar de: "Então, D. Natércia, está com óptimo aspecto", como se eu não soubesse o que óptimo quer dizer, eu a ver a mentira à légua, vejo mal mas ainda consigo ver-me ao espelho, nessas ocasiões acho que até gostava de ver pior. Apetece propor: "Quer trocar?" Mas ainda que o aspecto fosse já não digo óptimo, ao menos bom
(que nem por sombras)
e o resto, o que não se vê, as vísceras num desarranjo permanente apesar de montes de comprimidos todos os dias, que às vezes até me baralho, o coração sempre a avisar-me: "Julgas que tens vinte anos?", a obrigar-me a parar quatro ou cinco vezes para subir a miséria de dois lanços de escadas, e mesmo assim sabe Deus, eu que em nova subia três ou quatro andares com uma perna às costas, a espinha aos gritos por coisas de nada
(coisas que eram de nada)
um calvário calçar os sapatos, apanhar uma porcaria qualquer do chão, a esferográfica de fazer as palavras cruzadas, para não ir mais longe, que o sono às vezes faz deslizar para a carpete,
(um nevoeiro de chumbo a pesar-me na cabeça, a fazê-la despenhar-se, o queixo numa pancada contra o peito a travar-lhe abruptamente a queda, a fazê-la subir de novo como uma bola atirada ao chão, na televisão por instantes vultos indistintos em gestos sem sentido, o nevoeiro a adensar-se de novo, o queixo outra vez a descair)
um calvário portanto apanhar uma porcaria qualquer do chão, a esferográfica de fazer as palavras cruzadas, por exemplo, para já não falar do cocó do cão
(que é quem ainda me vale para ter alguma companhia desde que Deus levou o meu Ernesto)
quando o levo a arejar à rua, já me lembrei de fazer como os vizinhos que deixam a trampa dos cachorros espalhada por todo o lado, uma vez até por descuido
(que eu ando sempre a olhar para o chão por causa disso)
aconteceu-me pisar um cocó, o trabalhão que foi para fazer desaparecer o pivete dos sapatos, sabões, detergentes, escovas, até uns borrifos da minha água de colónia que me farto de poupar porque para a miséria da minha pensão é caríssima, mas também não posso andar por aí a tresandar a velha, e mesmo assim durante uma semana parece que tudo me cheirava a cocó de cão.
Os ossos desconjuntam-se numa reclamação uníssona, numa vozearia rangente que me parece atrair as pessoas às janelas, às vezes até me lembro do meu falecido Ernesto
(Deus o tenha em descanso)
também se queixava muito dos ossos, coitado, ele a queixar-se das costas: "Ando com umas pontadas aqui em baixo", e eu a animá-lo: "É o tempo que está a mudar".

Ela a pensar que me animava , mas eu: "Porque é que quando eu tinha vinte anos o tempo nunca mudava?", e não eram só os ossos, claro, outras coisas, as noites mal dormidas, a próstata a fazer-me levantar três e quatro vezes para ir à casa de banho, ficar uma eternidade sentado na sanita a gotejar esforços, voltar para a cama a arrastar as chinelas sonolentas, a matutar na última consulta: "O senhor doutor acha que vai ser precisa a operação?", e o médico a pensar que me sossegava: "Quando sai ainda não precisa de fazer um mapa dos urinóis da cidade, pois não?" Mas o certo é que as noites eram um desassossego, deita, levanta, deita, levanta, e foi mesmo a próstata que acabou comigo.

Às vezes ganho coragem
(que é preciso coragem, não julguem que não)
e ponho-me a olhar para mim mesma, as pernas, por exemplo
(quem me trocou as pernas?)
cordas e nós arroxeados, nos pés joanetes triunfantes como cabos avançando pelo mar dentro
(o Dr. Gaspar: "Natércia, diga lá os cabos da costa portuguesa", e eu sempre com medo de falhar algum, eu que até gostava tanto de geografia: "Cabo Carvoeiro, Cabo da Roca, Cabo Espichel")
Nesse tempo não tinha joanetes
(cabos )
nos pés, agora dois grandes cabos
(Carvoeiro? Espichel?)
não de certeza o da Boa Esperança, onde já vai esse, esperança agora em quê, só se for em que os joanetes não vão por aí fora, furiosos, ameaçando ainda mais furar os sapatos, um martírio arranjar sapatos, sempre dois números acima para poder acomodar os joanetes, depois os pés enormes, não os pés, claro, os sapatos, mas os pés para todos os efeitos, enormes para um corpo que teima em não parar de mingar, esperança agora em quê, portanto, só se for em que os joanetes
(cabos)
não vão por aí fora, em que não me engrossem ainda mais as cordas e os nós das pernas, estes trambolhos que já não me querem obedecer, uma a avançar, a outra a ficar para trás, renitente: "Já disse que não posso", a acabar por vir mas hirta, de má vontade, emperrando no chão apesar do sobrolho carregado de ameaças. Até outro dia estatelei-me ao comprido no passeio, a carteira à banda no chão largada na aflição da queda: "Ai, meu Deus!", uma bola de carne, inerte por instantes
(uma eternidade?)
a encher o passeio, a ensaiar movimentos desajeitados como uma barata voltada sobre a carapaça a agitar as perninhas, a conseguir por fim pôr-me a quatro, uma voz algures a aproximar-se, a humilhação a aproximar-se: "Espere aí que eu ajudo-a", eu a fazer recuar as mãos no chão, a arquear as costas à medida que as mãos se iam aproximando dos pés, a procurar um ponto de equilíbrio, a tentar erguer-me num esforço retesado de carnes flácidas, uma eternidade depois um gemido de pé: "Ai, meu Deus!", eu a sacudir grãos de areia das falanges sem conseguir sacudir a humilhação, a justificar-me apetecendo-me mas é desaparecer: "Tropecei em qualquer coisa", sem que se visse nada em que se pudesse tropeçar a não ser eu própria, tropecei em mim própria, tropecei na velhice que me ensarilha os pés, eu ali portanto à mercê da piedade ou da chacota disfarçada dos outros, apetecendo-me desaparecer mas tentando pôr um ar natural
(o trambolhão foi um percalço, vejam)
sem pernas perras, a espinha aprumada
(sabe Deus o esforço e mesmo assim)
a ensaiar os primeiros passos da fuga libertadora, mas logo o osso da anca a trair-me, a chamar-me a atenção: "Não achas que estás a abusar, menina?", a tratar-me por menina na esperança de que isso ajude em alguma coisa, menina, quem é que vai acreditar que já fui menina?
E no entanto, de súbito, homens na rua a tomarem-me o gosto com os olhos, a verrumarem-me o decote tecendo imaginações, afectando um ar natural que o olhar enviesado denuncia à légua, enquanto eu, baixando os olhos, me apresso num pudor lisonjeado.

1 comentário:

rosa mabilda disse...

lindo.