terça-feira, 30 de novembro de 2010

Agarrar-se à vida

Como pode a gente agarrar-se à vida?
Em novo, ainda longe de ser este que sou agora, não precisava de me agarrar à vida, sempre Verão, sempre sol, sempre azul o céu. Tudo valia a pena e nunca a pergunta
- Para quê?
subia dos fundos escuros onde se escondem a renúncia e o medo, de que não suspeitava, e que agora sei que existem, porque
dou comigo a espreitar as notícias da necrologia
- Mais um
a olhar de relance a montra duma loja ao pé da estação onde negrejam retratos com cruzinhas ao lado, e um incómodo a picar-me
- Quando será a minha vez de me porem a fotografia ali?
a espiar no espelho os sinais da ruína que avança, as bochechas que desabam, os vincos que descem do nariz para o queixo cada vez mais fundos, os braços onde cada vez mais peles, a olhar-me numa fotografia com a Carolina ao colo e a pensar que ela, um dia,
- O avô
e eu já só aquela imagem e uma recordação desfocada.
Agarrar-se à vida como? Como pode a gente agarrar-se à vida?
- Aqui era eu em casa da minha avó Maria, devia ter uns quatro ou cinco anos
e percebo então como a vida me fugiu, como me foge quando o médico
- Há aqui uma perda de acuidade visual que não entendo
e a tenaz do medo a turvar-me o sossego
- Vamos fazer uns exames, o campo visual, um TAC ao cérebro
e a tenaz impiedosa a avançar as mandíbulas ameaçadoras apesar de o médico
- Nada de especial, não se preocupe.
Agarrar-se à vida como, quando a tenaz cada vez mais uma companhia indesejada, quando o corpo todos os dias a dar sinais
- Vai-te preparando
os ossos a gemerem, dez minutos a ler e nevoeiro nos olhos, o coração a coxear,
a Carolina, um dia,
- O avô
e avô nenhum.




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