terça-feira, 21 de outubro de 2008

O mundo subitamente em paz

Meados de Julho. Acabo de passar a ponte sobre o Vouga, encosto o carro à sombra de uns salgueiros, o rio mesmo ali, cem metros abaixo a ponte velha de cimento, agora sem préstimo, vedada nos topos com blocos de cimento não vá alguém lembrar-se de a atravessar de carro ou de tractor
(ele há gente capaz de tudo, e mais ainda agora que está na moda o radical)
e só parar na água, o tabuleiro cheio de corcovas, só faltam os cavalinhos e as girafas para parecer um carrossel. Apenas um ou outro pescador lhe dá ainda alguma serventia, é uma forma de passar o tempo estar ali horas esquecidas a olhar a bóia na água, a serrazinar os peixes
- Então picas ou não picas?
a pensar na morte da bezerra, a passar pelas brasas se nem peixes nem bezerra. Para lá da ponte velha a larga recta do Rio Novo do Príncipe, reflexos de árvores na água escura, lá muito ao fundo, no canal que a distância afunila, a ponte de Vilarinho, e já aqui, para a direita, o rio velho, que era esse antigamente o seu caminho. São nove e cinco
(a hora não interessa nada mas são nove e cinco)
quando começo a caminhada. Vou andando pela estrada de cimento, para mim é a estrada de cimento, como um outro caminho mais à frente é o caminho das amoras, um outro o caminho da comporta e outro ainda o caminho da vala, fui eu que os descobri para mim, acho-me no direito de os nomear a meu gosto. Vou sozinho e isso não me incomoda
(o Rómulo de Carvalho a justificar-me
- Gosto muito de estar comigo
e eu a concordar com ele, a dizer que sim com a cabeça)
à direita uma vala, plantas aquáticas, caniços e, para lá da vala, ladridos de cães sem cães, campos, árvores, pastos
(verde, verde, verde)
vacas
(não as vacas Mac Donald's em campos de concentração, com mugidos de lamento, sem ponta de verde, sem nada que se pareça com verde, não, vacas na erva, no verde, espaço à farta, sombras, até para ser vaca é preciso ter sorte)
campos de cultivo, milharais fechados por cortinas de árvores. De um e outro lado da estrada, bordejando-a, salgueiros, amieiros, choupos, um ou outro carvalho
silêncio
o coaxar das rãs
silêncio
o canto dos pássaros
silêncio
o zumbido distante de um tractor, outra vez um latido de cão, agora mais longe, e de novo silêncio
silêncio
e tantos verdes no verde, e o azul por cima, e o vento, e o sussurro da folhagem.
Uma carrinha de caixa aberta que vem das minhas costas buzina ao passar, um braço estende-se fora da cabine numa saudação, respondo com um erguer de braço sem palavras, só o braço
- Bom dia, amigo
dois braços que se conhecem já de outras vezes por ali, basta levantarem-se para dizerem o que é preciso e não mais do que isso. A carrinha pára umas centenas de metros à frente, quando lá chego ficamos um bocado à conversa, não os braços agora, nós inteiros, pouco tempo, coisas banais, e sigo. Trago comigo um bloco
(o braço da carrinha
- Para que é que será o bloco?)
o pensamento não pára, de súbito uma ideia, outra, às vezes parecem-me aproveitáveis, anoto palavras soltas, frases avulsas, depois tentarei coser tudo isso, outras vezes acho que não valem a pena, deixo-as ir na corrente. De novo o silêncio, uma breve hesitação
- Vou por aqui ou por ali?
lembro-me dos cães que, por ali, o caminho das amoras, me costumam saltar ao caminho, ameaçar as canelas, mas venço a cobardia com a ajuda de uma vara que apanho do chão
(também já descobri que ao gesto, basta o gesto, de me baixar para apanhar uma pedra os cães tornam-se de súbito cordatos, retiram-se discretamente pedindo desculpa pelo incómodo
- Pode passar, esteja à vontade, não o tínhamos reconhecido).
Já se vêem amoras, ainda verdes, nem sequer vermelhas, quando estiverem pretas, lá para Agosto, hei-de fartar-me, a Carolina há-de vir comigo algumas vezes, gosta muito de amoras como eu, já estou a vê-la
- Olha, avô, tão grande esta!
a meter amoras pretinhas à boca, às vezes
- Essa não, Carolina, ainda está verde, só as pretas
a lambuzar-se toda, a dar saltinhos de contentamento.
Passo o começo do esteiro que vai dar à comporta, há um caminho por aí mas hoje não, sigo ao longo da vala para nascente
(este, leste, obrigado, D. Célia, sempre me serviu de alguma coisa aprender os pontos cardeais nas aulas de Geografia)
é costume encontrar cegonhas por estes lados, e garças, no Inverno e no começo da Primavera também patos, os milhafres todo o ano planando lá no alto, máquinas perfeitas de voar.
E de novo o silêncio, o canto dos pássaros dentro do silêncio, o verde a toda a volta, o azul por cima, o vento nas ramagens
(tão doce o vento nas ramagens)
o mundo subitamente em paz, o coração num pulsar tranquilo, a estender os olhos em sossego e a querer que o tempo não passe.

2 comentários:

Anónimo disse...

Podes crer Jorge é paz que se sente com este teu texto, um olhar a natureza pelos teus olhos - situações que para qualquer um passariam despercebidas...tu descreve-las de uma maneira simples e bela.
Abençoada tecnologia que permite esta partilha.
Obrigada
Teresaroldão

Jorge Cunha disse...

Teresa: eu escrevo estes textos (quase) só para mim, pelo prazer que me dá este "ofício de paciência" (Eugénio de Andrade) que é jogar com as palavras. É tão difícil encontrar as palavras certas! Mesmo quando, depois de escritas as que nós pensamos que o são, elas aparentam ser fáceis e simples, ali à mão. Quanto trabalho, quase sempre, sob a aparente simplicidade. Claro que esse é um dom que eu lamento não ter, mas, ainda assim, a palavra é uma das boas razões que tenho para ir vivendo com uma modesta alegria.
Jorge